Introdução
O artigo de hoje tem como objetivo trazer o conceito e a análise na relação de trabalho das pessoas transgêneros, abordando a dificuldade na inserção no mercado de trabalho e a discriminação sofrida dia a pós dia, ocasionando muitas vezes na dispensa imotivada, sendo esta apenas discriminatória.
Juntamente, é abordado as decisões e discussões jurídicas em referência a proteção da pessoa transgênera na esfera trabalhista, há uma necessidade de resguardar direitos fundamentais.
Origem
A Constituição Federal de 1988, prevê em seu artigo 5º, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, bem como é previsto no inciso XLI, do mesmo artigo, que a lei punirá qualquer discriminação atentatório dos direitos e liberdades fundamentais.
O simples anúncio de vagas que tenham caráter discriminatório, e/ou tenham o intuito de limitar e dificultar o acesso do candidato, é proibido, sendo expresso na CLT. Do mesmo modo, ninguém pode ser dispensado em razão de sua identidade de gênero, no caso, havendo discriminação poderá este funcionário ser indenizado e até mesmo reintegrado, conforme Lei nº 9.029/1995.
No Estado de São Paulo, é possível não só a indenização, como a empregadora poderá arcar com uma multa administrativa, podendo até ter a licença de funcionamento cassada consoante Lei 10.948/2001.
Conceito
Quando falamos em gênero, pensamos em homem e mulher, não só no aspecto biológico mas como essa pessoa se expressa perante a sociedade. Pessoas transgêneros têm a identificação oposta ao que fisicamente, biologicamente é “aceito” pela sociedade, ela nasceu com determinado sexo biológico, porém não se identifica com seu corpo.
A insatisfação com a identidade biológica pode vir muito cedo, estudos apontam que crianças entre 3 a 4 anos já começam a demonstrar o descontentamento com sua identidade de gênero.
Quando falamos de igualdade social, partimos da premissa que todos são iguais perante a lei, entretanto como diria Aristóteles, “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”, a Constituição Federal em seu artigo 1º, inciso II e III apresenta a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito, bem como, o artigo 3º, inciso IV, é previsto o direito e dever de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Esses artigos constituem a base jurídica, vedando a distinção entre as pessoas de qualquer natureza, logo se é aferido a uma pessoa discriminação pelo gênero, ou qualquer outra forma, é incompatível com a norma constitucional.
O preceito tem como raiz a distinção praticada por pessoas que julgam ser fora da “normalidade” da sociedade, muitas vezes tendo como base a religião, cultura e status social. Portanto, é necessário a elaboração de politicas públicas específicas para a proteção e promoção de direitos da comunidade LGBTIQ+ de modo a efetivar a inclusão dessas pessoas na sociedade.
Em pesquisa realizada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a expectativa de vida de uma pessoa transgênera no Brasil é de 35 anos, muito abaixo da expectativa nacional de 75 anos, a mesma pesquisa revela que a cada 19 horas uma pessoa LGBTQI+ é morta no país, no qual infelizmente lideramos essa lista em comparação com outros lugares.
Atualmente as pessoas trans não precisam passar por um processo longo para alterarem seu nome, essa é uma conquista muito importante para a sociedade, o procedimento pode ser realizado em um cartório. Pela primeira vez o TSE nas eleições municipais do ano de 2020, permitiu que pessoas trans puderam se candidatar com seus nomes sociais, este é mais um dos direitos alcançados com muito esforço pela comunidade LGTBQI+, neste ano o número de pessoas transgêneras que se candidataram foram no total de 159 em todo o país, sendo apenas 23 eleitas. Em comparação ao ano de 2018, foram 29 candidaturas e 15 foram eleitas como suplentes de deputado estadual e deputado federal.
No Brasil, é admitido a discriminação positiva, que são medidas que compensam determinado grupo que estão em desvantagem social, aplicando o princípio da proporcionalidade. Diferentemente da discriminação negativa, no qual viola a dignidade da pessoa humana.
No âmbito internacional, os princípios de Yogyakarta refere-se ao direito ao trabalho digno, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero.
Em 1977 a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade na classificação internacional como um tipo de doença ou transtorno, entretanto o transgênero ainda é classificado como uma espécie de transtorno mental, CID 10F.64, isso faz com que ainda haja muita discriminação em torno dessas pessoas.
Na esfera trabalhista, um dos princípios do direito do trabalho é o princípio da proteção, sendo necessário uma tutela protetiva para aquelas pessoas hipossuficientes em sua relação de trabalho. A Convenção 111 da Organização Mundial do Trabalho em 1958, definiu o significado de discriminação no ambiente do trabalho, sendo aprovada no Brasil através do Decreto Legislativo de nº 104 de 1964, ratificada em 1965, e promulgada por meio do Decreto 62.150 em 19 de janeiro de 1968.
No estado de São Paulo a Lei de nº 10.948/2001 aplica penalidades nos casos em que há discriminação em razão da orientação sexual de homossexuais, bissexuais ou transgêneros. Penaliza-se os atos de violência moral ou psicológico, bem como a proibição de ingresso ou permanência em qualquer ambiente, a inibição de contratação, a prática de atos de demissão, o impedimento de hospedagem ou locação de qualquer bem em motivo da orientação sexual.
Os Tribunais Regionais do Trabalho, bem como o Tribunal Superior do Trabalho vem discutindo a algum tempo a respeito das discriminações advindas da identidade de gênero, sendo esta a motivação para pessoas transgêneras serem afastadas de seus serviços ou mantidas em ociosidade forçada e até mesmo passarem por momentos hostis no dia a dia.
DISPENSA DISCRIMINATÓRIA – ATO ILÍCITO – RESTRIÇÃO PATRONAL AO DIREITO DE LIVRE EXPRESSÃO DA CONDIÇÃO DE TRANSGÊNERO NO AMBIENTE DO TRABALHO – DANO MORAL – Configura ato ilícito patronal a dispensa discriminatória e tentativa de limitar a nova condição de pessoa transgênero assumida pelo empregado. O respeito da dignidade da pessoa contempla, dentre outros, o direito subjetivo do indivíduo de estabelecer relações com outros seres humanos, tanto fora como no ambiente de trabalho, especialmente se levarmos em conta que é no desempenho da atividade profissional que toda pessoa, em maior ou menor extensão, tem a oportunidade de socializar e afirmar sua nova condição de transgênero. Mesmo em escola confessional, o respeito à dignidade do transgênero é indeclinável. Desvio de comportamento patronal enseja dano moral indenizável. Recurso da reclamada desprovido.
(TRT -15 – RO: 001226649201551500002 0012266-49.2015.5.15.00002, Relator: EDILSON DOS SANTOS PELEGRINI, 10ª Câmara, Data da Publicação: 17/03/2017).
Podemos observar, que mesmo no caso deste julgado transcorrido, o pratono que era um colégio confessional, ambiente em que há muita discussão a cerca da identidade de gênero e a sexualidade, o TRT 15 deu provimento ao pedido de danos morais devido a uma dispensa discriminatória, o judiciário, assim como os outros poderes não podem misturar religião com as necessidades da sociedade.
DANO MORAL. TRABALHADOR QUE ASSUME SUA TRANSEXUALIDADE. DISCRIMINAÇÃO VELADA. TRABALHADOR MANTIDO EM OCIOSIDADE. ASSÉDIO MORAL CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. A discriminação é a negação do princípio da igualdade, eis que discriminar é fazer distinção. Em matéria trabalhista, discriminação, segundo a Convenção 111 da OIT, é toda distinção, exclusão ou preferência que tenha por fim alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em matéria de emprego ou profissão. Em nosso ordenamento jurídico a proibição da discriminação tem base constitucional, eis que, em seu art. 3º, foi estabelecido como um dos 10 objetivos da República Federativa do Brasil, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, e, em seu art. 5º, foi assegurado que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”. E, para o caso específico da discriminação no ambiente de trabalho aplica-se também o disposto no art. 1º da Lei 9.029/95. Ocorre que a discriminação do trabalhador é externada muitas vezes através de comportamentos que se configuram como assédio moral. No presente caso, a prova oral demonstrou que o trabalhador, após assumir sua transexualidade, foi afastado do trabalho pelo seu superior hierárquico, sem que houvesse justificativa convincente para isso, eis que a própria testemunha patronal admitiu que no setor de ambulâncias não faltava serviços e que existem uma ou duas ambulâncias reservas. Ora, o fato do empregador deixar o empregado na ociosidade, sem qualquer função, marginalizando-o no ambiente de trabalho, constitui inequivocamente assédio moral. E, na hipótese, o assédio moral é decorrente da discriminação de que o autor foi vítima, discriminação essa que sequer foi declarada, mas, sim, velada, que é aquela que é mais difícil de ser comprovada, porque não se caracteriza por comportamento visível a todos. Neste contexto, a conduta do superior hierárquico violou o princípio da dignidade como pessoa humana, adotado como fundamento de nossa república (art. 1º, III e IV, da CF), sendo devida ao obreiro a reparação civil pelo dano moral sofrido mediante a condenação do reclamado ao pagamento de indenização. Recurso ordinário provido. (TRT-15 – RECORD: 36151 SP 036151/2010, Relator: LORIVAL FERREIRA DOS SANTOS, Data de Publicação: 02/07/2010).
Em outro julgado de nº 0010880-49.2019.5.15.0032, o desembargador afirma que a identidade do trabalhador deverá ser aceita pelo empregador, fazendo com que ele possa usufruir de todos os meios sociais, não só o nome social, como a utilização do banheiro.
O STF em Recurso Extraordinário de nº 845779, com repercussão geral, bem como o Ministério Público do Trabalho através da Portaria nº 1.0036/2015, reconheceu não só a o nome social no ambiente de trabalho, como a garantia da utilização de banheiros e vestuários de acordo com a identidade de gênero.
Analisando a jurisprudência atual, é possível observar que a discriminação sofrida caracteriza-se como assédio moral, sendo esse crime configurado como uma violação a dignidade da pessoa humana. Dentro deste conceito, é previsto na Súmula 443 do TST, que a despensa discriminatória do empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito, não é válida, tendo o empregado direito à reintegração no emprego. Fazendo uma analogia, todo empregado que foi dispensado de forma discriminatória teria direto a reintegração, tendo em vista a vulnerabilidade e hipossuficiência do funcionário.
Em 13 de junho de 2019, o STF declarou que práticas homofóbicas e transfóbicas podem ser igualadas a crime de racismo, artigo 20 da Lei 7.716/1989, com pena de um a três anos e multa. Portanto, esta é mais uma matéria a ser debatida, podendo ser utilizada na esfera trabalhista, fazendo que assim possa haver mais uma política, ou ação para que situações vexatórias, humilhantes de descriminação possam ser punidas mais veemente.
Conclusão
Diante do exposto, é notório a necessidade de mais ações não só por meio de políticas públicas, como do próprio judiciário, para que ocorra uma atuação mais assertiva com relação a prevenção e punição desse tipo de crime terrível. De acordo com um relatório, divulgado em julho de 2020 pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil é o país que mais contabiliza mortes de LGBT+ no mundo, no ano de 2019 foram registrados 329 mortes violentas, sendo 297 homicídios e 32 suicídios. No ano de 2018 foram registrados 420 casos e em 2017, 445 mortes.
Na esfera trabalhista, ainda não existem leis específicas que protejam esta classe tão excluída pela sociedade, é possível utilizar-se de normativas, decisões de outras áreas para preencher essas brechas no ordenamento jurídico. Discriminação é crime, e muitas vezes devasta a vida de uma pessoa, é preciso olhar para cada um com humanidade, compreender e fazer valer os direitos fundamentais enunciados na Constituição Federal.
Escrito por: Luísa Ribeiro Gomes